Um dos melhores filmes que assisti esse ano, e olha que já vi muitos.
Estética e tecnologicamente desafiador, não espere um desenho bonitinho e convencional, nem efeitos especiais mirabolantes. Nesses tempos de 3D, se você consegue se libertar por algumas horas dos padrões estéticos dominantes e permitir se aventurar na “feiura” [eu gostei da estética, além de tudo achei necessária à consistência da história] proposital, na beleza implícita e delicada, na narração inteligente fazendo dupla com os enquadramentos sutis, na trilha sonora envolvente e irretocável, não sentirá falta de nenhum recurso mais moderno, afinal os recursos aqui são outros, eles contam principalmente com sua sensibilidade e perspicácia. Prenda-se aos detalhes!
O filme conta a estória da amizade entre duas criaturas separadas pela distância e idade, mas unidas pela solidão e sensibilidade, pelo gosto por chocolate, pela mesma série de TV, por cores sem alegria e pela ausência do sorriso. Uma crítica mordaz e criativa, ao mesmo tempo bem humorada e triste sobre a “frieza” das relações interpessoais, as fobias, os vícios e incongruências da sociedade contemporânea. Sem esquecer em alguns momentos de dar umas cutucadas nas questões ambientais.
Ela é uma garotinha com olhos cor de lama, um sinal de nascença cor de cocô, que vive na Austrália e adora leite condensado. Solitária, pobre, filha de uma mãe alcoólatra e de um pai mecanizado e apagado, tem como únicos companheiros os brinquedos que ela mesma faz com restos de lixo, um vizinho fóbico e um galo que escapou do matadouro. Apesar dos pesares, sua aura ingênua, própria das crianças isentas da maldade, nos encanta; seu caráter nato, indo contra todo o exemplo familiar, nos surpreende. Mary, determinada e otimista quase sempre, é apaixonada pelo seu vizinho grego e persiste na busca da amizade palpável e verdadeira.
Ele é um homem de olhos pretos, um “aspie” que odeia quem joga bituca de cigarro no chão, anti-social e avesso à civilização cujos hábitos são danosos e extremamente contraditórios segundo seu ponto de vista. Talvez pense assim porque vive em Nova Iorque, uma cidade, a seus olhos, tremendamente desumana e caótica. Consequentemente tornou-se solitário e incapaz de cultivar amizades, pelo menos a curta distância. Filho de mãe violenta e pai suicida, judeu, virgem, chocólatra e obeso, seu círculo de relacionamento se resume a uma vizinha cega que ocasionalmente cuida dele e um amigo invisível. Max sofre de síndrome de Asperger e vai ao psiquiatra regularmente, que para ele é quase como um pai.
A amizade dos dois se desenvolve à distância e nessa busca pelo afeto, apesar de suas limitações, conseguem ajudar-se mutuamente, como se emprestassem seu modo de ver o mundo um ao outro. Mesmo tendo horizontes limitados e problemas sérios, conseguem ampliar suas perspectivas, através da influência positiva e mútua que exercem no crescimento pessoal de cada um. Essa interação surpreende, causa espanto, alegria, mas também dor, e nesse detalhe se esconde a beleza do filme. A constatação de que a imperfeição é natural, o quanto é tola a mania de buscarmos a perfeição no outro, nas coisas e em nós mesmos, e como isto pode nos fazer infelizes e interferir na nossa evolução.
É uma história sobre aceitação, sobre o verdadeiro sentido de afinidade e parentesco. Sobre estar perto, mesmo estando a quilômetros de distância. Um filme baseado em fatos reais que nos ensina sobre amizade e o sentido da vida: uma longa calçada a ser percorrida na maioria das vezes sozinho, para uns muito bonita, limpa, acessível, pitoresca e sem obstáculos, para outros, nem tanto. Mas isso não aumenta nem diminui ninguém.
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Este filme já ganhou pelo menos sete prêmios. Entre eles, o Urso de Cristal de Menção Honrosa ao Cinema Juvenil Generation 14+ no Festival de Berlim, o Grande Prêmio do Festival de Animação de Stuttgart, o de melhor roteiro no Prêmio Queensland Premier’s Literary e o Grand Cristal no Festival de Animação de Annecy.
Não perca, afinal existe vida inteligente além da Disney e Pixar!!
Visitem o site do filme … É um arraso!