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Mórbido

Publicado: 28/05/2009 em conto
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Marcou para encontrarem-se no cemitério, lugar melhor não haveria.

Paulo chegou diante do endereço e duvidou. Seria este mesmo o local do encontro? Olhou novamente para o papel em suas mãos e conferiu, rua, número… Sim, estava certo. Teve certo medo de entrar, já era fim de tarde, logo escureceria, mas foi em frente ainda vacilante. “Ao chegar dirija-se à estátua do anjo em mármore branco“, ele lia o papel e olhava em volta andando apressado.

O anjo de mármore olhava para o alto e suas mãos pareciam suplicar. Ela gostava daquela visão, sentia uma atração mórbida por cemitérios, adorava ver o sol morrer entre as capelas esculpidas rodeadas pelo silêncio absoluto. Sim, o lugar era perfeito para por fim àquele relacionamento com Paulo, tudo havia morrido, o amor, o desejo, a paixão… tudo. Imaginar os mortos lhe rondando lhe daria arrepios, ele era um covarde, ia morrer de medo quando tudo escurecesse e apenas sua lanterna iluminasse a imensa escuridão que se instalaria entre eles, além da dos sentidos que já tomara conta de tudo.

Depois de ouvir que tudo morrera e que não o queria mais, Paulo entrou numa profunda depressão, encostou-se ao túmulo e chorou, enquanto ela tomava um vinho tinto barato aos goles pelo gargalo e olhava a lua que nascia completamente amarela por trás do perfil recortado das cruzes. Pensava no quanto sentia-se leve, livre, tranquila; subiu no túmulo e abraçou-se ao anjo fazendo caras e bocas, rindo por dentro… Aquele silêncio sepulcral combinava com seus sentidos naquele momento, apenas os soluços de Paulo e seus repetidos “porquês?” interrompiam em alguns instantes a saborosa sensação de alívio que desfrutava. Cansada de ouvir seus lamentos – ele mais parecia uma carpideira – tapou os ouvidos e saiu perambulando pelas aléias. Paulo absorto em sua infelicidade nada ouvia, apenas sentiu o toque frio  sobre seu braço e assustado olhou ao redor. Uma moça linda, muito branca, de longa cabeleira negra olhava-lhe com compaixão querendo saber o que lhe acontecia. Conversaram um pouco ali junto ao anjo e ela confortava carinhosamente suas dores. Paulo a chamou para saírem dali, ela o olhou surpresa, mas ele não deu-lhe tempo de recusar e a levou pela mão… Ela era tão linda, meiga, delicada, suas feições tinham um quê de melancolia e seu jeito compassivo o encantava.

Levou-a a um bar, pediu algo para beber, mas a garota nada quis, enquanto isso um monólogo era iniciado. Paulo falava, falava, falava e ela o olhava com seus olhos tristes carregados de compaixão – tudo que precisava agora. O garçon o olhava de modo estranho e perguntou se tudo estava bem, ele assentiu, o garçon não parecia convencido e falou que ele deveria ir para casa. Paulo não entendia, olhou para a linda cabeleira negra que terminava sobre os braços muito, muito brancos. A moça acariciou suas mãos, “ela deve estar com frio“, ele pensou ao sentir seu toque. Tentou aquecê-la, tocando-a também, mirando-lhe as formas alvas, deslizando as mãos pelos seus braços magros… Foi quando percebeu os pulsos cortados e o sangue seco que manchava sua pele.

 

A Boca da Noite

Publicado: 24/06/2008 em conto
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Aquele pedaço da cidade era negro, iluminação precária, paredes cinzentas, sujas, pichadas. Espreitava enquanto tragava o resto de um cigarro barato, o fio branco da fumaça subia sinuoso bem acima dos seus dedos trêmulos e sujos.

Ruído vindo da calçada, do outro lado, chamou sua atenção. Faca na mão, ele aguarda…

Andava só, passos apressados ecoavam no silêncio da rua, cabeleira negra e farta esvoaçava, vestido preto contrastava com a pele alva. Aproxima-se dela gritando, incisivo “passa a bolsa senão te furo!”. Olhos negros arregalados, mãos brancas e magras crispam-se sobre a bolsa. Apavorada, tenta correr. Ele cumpre a promessa, enquanto a observa cair sobre a calçada ao lado da poça avermelhada que rapidamente cresce.

Arranca-lhe a bolsa das mãos inertes de unhas tão rubras quanto o sangue que escorre pela calçada cinzenta e sai em disparada mergulhando outra vez na boca negra da noite, deixando atrás de si mais um capítulo colorido da sua vida em preto-e-branco.

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Suas mãos sujas seguravam o binóculo enquanto a procurava do outro lado do vale. Eram tantos os contrastes, tantas diferenças, na verdade, muito mais que aquele vale os separava.

A primeira vez que a vira, era um vulto debruçado sobre a janela, com os olhos perdidos, parecia sonhar. Tinha sido semanas antes, muito antes do assalto de hoje. Agora com o binóculo podia vê-la em detalhes. Mas antes, apenas o vislumbre do seu vulto já havia lhe roubado a atenção, o sono, o sossego, os anseios, os pensamentos, os planos. Logo ele que vivia de roubar os outros. Depois dela, tudo havia mudado, este foi o último assalto, apenas para ter o binóculo, ele se prometeu. Agora fazia planos, sua vida adquirira um sentido, um brilho, um tom de esperança.

Pelo binóculo ele a tinha bem perto, quase podia tocá-la. Seus olhos pretos, seu rosto sério, seus cabelos fartos de cachos que desciam deslizando pelo pescoço esguio e delicado. Sonhava com ela todas as noites, imaginava sua voz e seu toque. Acordava suado, agitado. Várias vezes ensaiou palavras e foi à porta de seu prédio, mas de lá voltava cabisbaixo, vencido pela insegurança e pelo medo da rejeição. Outras vezes, sonhava com seu cheiro, seu gosto, inventava-lhe um nome e ganhava um sorriso. Mas curioso, pensava ele, vista pelo binóculo ela pouco sorria, era tão séria e muitas vezes chorava. Nestes momentos ele se transportava e do seu lado a protegia, abraçando-a ternamente.

Os dias passavam na esperança do encontro.

Numa tarde, chegando em casa, ele era pura satisfação. Conseguira um trabalho como moto-boy. Como sempre se dirigiu para o alto da laje, binóculo nas mãos, enquanto isso ensaiava as palavras que brevemente diria a ela. Estava decidido, iria mais uma vez esperá-la defronte do seu prédio, e quando ela saísse, se encheria de coragem para aproximar-se. Enquanto pensava, trouxe o binóculo aos olhos para tê-la, desta forma, pelo menos por enquanto mais perto.

Parecia agitada, ia de um lado a outro do quarto repetidamente e chorava. Ele procurou seus olhos, estavam vermelhos, carregados de angústia e suas mãos trêmulas deslizavam freneticamente sobre os cabelos. Encostou-se no vidro da janela, colocou a cabeça entre as mãos. Ele quis sair ao seu encontro, mas inesperadamente abriu a janela e sentou-se sobre o peitoril, estava agitada, olhava para o nada e seus olhos transmitiam uma tristeza absoluta. Quis abraçá-la, mas diante da impossibilidade, gritou e acenou-lhe. Ela não o enxergava, ele jamais existira. Gritou mais uma vez, ela então olhou à frente e lhe sorriu abrindo os braços, ele tentou devolver o sorriso, mas ela não mais estava lá.

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Vento no litoral

Publicado: 10/04/2007 em conto

Ela chegou àquele terraço debruçado sobre o mar e observou o vazio ao redor. Seus olhos tristes se voltaram para a solidão da praia, repleta de sulcos, pegadas, marcas… Fechou-os e sorveu lentamente aquele aroma amargo.

Refez o percurso, enquanto seus olhos acompanhavam as marcas até o horizonte. Lá, onde ela tinha ficado. Deixava o vento açoitar seu rosto na tentativa de esperar que ele limpasse tudo. Era assim, desde aquela remota tarde, olhar o mar era como ver a si mesma, presa e sem chances de liberdade.

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O sol caía sobre o mar criando um rastro mágico e dourado, de um brilho intenso e ofuscante. Sentados na areia, mudos, eles haviam se buscado ansiosos, antes daquele mergulho, daquela onda. Brigas, desentendimentos, discussões pendentes.

Antes de entrar no mar, ele olhou-a, era um olhar fosco, permeado por uma angústia cinzenta, sem brilho e sem esperança. Naquele momento, sem saber, ele a tomou como refém. Correu para o mar, jogou-se sob a onda e mergulhou. O vento forte formava ondas altas e violentas que quebravam sobre as pedras do lado esquerdo da praia, levantando espasmos violentos de espuma. Sentada na areia, braços cruzados sobre os joelhos, olhos atraídos pelo alvoroço da espuma, perdeu momentaneamente a noção do tempo, acompanhando o ir e vir, o quebrar e refazer das ondas.

De repente, um alarido, gritos, alvoroço, pessoas correndo em direção ao mar. Seus olhos acompanhando aquele movimento, deram num corpo desfalecido sobre a areia. Correu em sua direção, o coração aos saltos, jogou-se desesperada sobre ele enquanto gritava e o agitava em vão. Era inútil, ele não mais lhe ouvia.

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Cada vez que escutava a música VENTO NO LITORAL (Legião Urbana), eu era tomada por uma melancolia enorme. Hoje, à tarde cantarolando esta música, pensei mais uma vez em como sou tomada por esta sensação, que ao contrário do que possa parecer, é algo muito benéfico, positivo e gostoso de sentir. Tristeza nem sempre é ruim, não é mesmo? Nesses tempos de culto à felicidade a qualquer custo, onde andamos deixando o espaço para a tristeza que por vezes se aproxima de nós? Saudável é, acho eu, que saibamos acolher positivamente todos os estados de espírito. Necessário para a saúde da nossa cuca deve ser vivenciá-los calma e naturalmente, e depois deixá-los ir no mesmo ritmo que veiram.
Hoje fiz isto escrevendo esta estória. Assim a tristeza veio e se foi, e cá estou eu agora, sorrindo. Imaginem, depois de uma busca incansável (risos), achei a imagem e a música perfeitas para este post. Maravilha!!

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(Sarah K > abr/2007) ……………………. (foto: F. Monteiro)

A cor e a DOR

Publicado: 25/06/2006 em conto
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foto: Michael H. Sinn

Ao encontrar seu homem com outra, perdeu a noção das coisas. Cega de raiva, como uma selvagem quebrou tudo à sua volta, saindo em disparada, correndo pela rua, desgovernada. Lágrimas escorriam daqueles olhos azuis e desciam pela pele branca; a face de um anjo desfigurada pela dor. A raiva deixava trêmulas as suas mãos e o ciúme a tornava temporariamente cega e tremendamente doída.

Corria, apenas corria, e ainda ofegante e atônita percebeu que estava diante de um cemitério, ao lado, alguém vendia flores, mas a alegria lhe havia sido roubada. Do outro lado da rua um luminoso chamou sua atenção, suas luzes e o silêncio puxaram-na para dentro. Chorava ainda, soluçando, olhos vermelhos, borrados, cabelos desgrenhados. Uma mocinha vestida de vermelho, veio atendê-la e penalizada tentava consolá-la. Olhava aturdida para aquela mancha vermelha que a servia, parada à sua frente, mas não lhe escutava, apenas ouvia seus próprios soluços e chorava, chorava, chorava … Queria comer, comer, comer, depois sumir e dormir por incontáveis dias e noites. E depois? Respostas não lhe ocorriam.

Enquanto comia, observou ao redor e percebeu a garota ainda de pé ao seu lado, falando, falando … Sim, falava sem parar sobre alguém que havia morrido. Percebeu então que a garçonete, a consolava como se achasse que ela houvesse saído daquele sepultamento que acontecia do outro lado da rua. Seus olhos caminharam lentamente em direção ao cemitério, enquanto ela pensava em como felizes seriam seus dias se ela pudesse encerrar todo amor e dor que sentia dentro daquele caixão e abafá-lo sob a terra daquela sepultura. E ela sorriu.
A garçonete confusa, via despontar daquele rosto sofrido, um misto de cinismo e prazer. Ela então, levantou-se, pagou a conta enquanto apanhava a faca que repousava sobre o prato, olhou para a mocinha e seu vestido Vermelho, buscando inspiração e saiu.

 

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(Sarah K >jun/2006)

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